A Doutrina dos Espíritos é dos espíritos, o Espiritismo é dos homens, conforme nos ensinam os espíritos orientadores. Em outras palavras, o Espiritismo é a interpretação possível alcançada pelo homem, num determinado tempo e espaço. A Doutrina contém os fundamentos, as questões substantivas que, interpretados à luz da mentalidade de uma determinada época, assumem os contornos do elementos da cultura vigente nesta mesma época.
Em cada período histórico, a Humanidade alcança uma compreensão sobre o mundo, sobre si mesma. Essa compreensão se expressa através dos meios culturais disponíveis, como símbolos, signos, significantes e significados, que permitem a constituição de sentidos para a respectiva existência. Portanto, são alcances sempre relativos, limitados pelos paradigmas da inteligência, da contingência e da cultura.
Assim, nenhuma obra é definitiva, nenhum enunciado se esgota em si mesmo, todos os registros são históricos e, portanto, temporais. Em outras palavras, pertencem ao momento e ao espaço em que foram produzidos. Isto vale para as obras espíritas, incluído o Pentateuco kardequiano.
No entanto, toda obra de intensa e extensa envergadura tem longo alcance por ser portadora de núcleos estruturantes substanciais que, apesar da corrosão do tempo na sua estética, não perde a vitalidade de seus enunciados fundamentais. Por exemplo, quando Hammurabi elaborou seu código, há mais de 3.700 anos, tratou dentre outras coisas da reparação diante das injustiças, conhecida como “pena de talião”, ou “olho por olho, dente por dente”. Essa aplicação da Lei, evidentemente, pertence ao seu tempo. Hoje, a humanidade já não admite mais tais formas de reparação.
Mas, apesar da obsolescência dos meios, a substância permaneceu, ou seja, o sentido de justiça não se desfez pelo tempo. Pelo contrário, de lá para cá o homem tem invariavelmente buscado o permanente aperfeiçoamento das formas de se fazer justiça. Dito de outra forma, há algo que permanece e transcende à temporalidade terrena, qual seja, o sentimento essencial de justiça que reside na substância do espírito e que, portanto, assim como seu portador nunca esvanece.
As obras espíritas, como afirmamos, também estão sujeitas às mesmas vicissitudes temporais sem, contudo, dissiparem-se seus fundamentos. O que é preciso é fazer a permanente crítica do discurso espírita, para, através da hermenêutica das obras, alcançarmos seus significados perenes. Do contrário, se ficarmos na letra dos textos, nas suas representações simbólicas, estaremos fazendo a repetição e não a reflexão, a colagem e não a atualização e a recontextualização necessárias a permanente busca da verdade.
Rui Simon Paz. Sociólogo, professor acadêmico na Faculdade Doutor Leocádio Correia e coordenador de grupos de estudos espíritas.
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