segunda-feira, 20 de agosto de 2012

ALÉM DE TODA CRENÇA

       
    E se o cristianismo fosse diferente de tudo o que conhecemos? E se, ao lado de Mateus, Marcos e Lucas, o Novo Testamento não incluísse o relato de João, mas sim o de Tomé, um dos evangelhos gnósticos? Além de Toda Crença explora os primórdios do cristianismo, remontando a esses primeiros textos e comparando-os aos escritos canônicos. Elaine Pagels mostra o que levou os primeiros líderes cristãos a incluir determinados evangelhos na doutrina e excluir outros, eliminando muito da diversidade e riqueza espiritual da nova religião. Em seu novo e corajoso livro, a autora - uma das maiores autoridades mundiais na área de religião e história, e vencedora do National Book Award com o revolucionário Os Evangelhos Gnósticos - explora fontes históricas e arqueológicas para refletir sobre questões espirituais cruciais para nossa época, como a justiça e o amor.


       Abaixo, trecho do capítulo 1, "Do Ágape ao Credo de Nicéia."

      "Quando me diziam "Sua fé deve ser uma grande ajuda para você", eu me perguntava o que queriam dizer. O que é fé? Certamente não é a simples aceitação do conjunto de crenças que os devotos recitavam naquela igreja toda semana ("Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra...") - afirmações tradicionais que me soavam estranhas, como sinais da superfície, quase ininteligíveis, ouvidos no fundo do mar. Essas afirmações me pareciam ter pouco a ver com as relações que pudéssemos estar mantendo uns com os outros, com nós mesmos e, pelo que se dizia, com seres invisíveis. Eu estava agudamente ciente de que nos reuníamos ali levados pela necessidade e pela vontade. No entanto, às vezes me atrevia a esperar que aquela comunhão tivesse o potencial de nos transformar.
       Sou historiadora da religião e, como tal, quando visitava aquela igreja, eu me perguntava quando e como ser cristão se tornou praticamente sinônimo de aceitar determinado conjunto de crenças. Eu sabia, por leituras históricas, que o cristianismo sobrevivera a uma perseguição brutal e prosperara durante gerações - séculos, até - antes de os cristãos terem formulado em credos aquilo em que acreditavam. As origens dessa transição de grupos dispersos para comunidade unificada deixara poucos vestígios. Embora o apóstolo Paulo, cerca de 20 anos depois da morte de Jesus, tenha anunciado "o evangelho", que, diz ele, "também eu recebi" ("que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que foi ressuscitado no terceiro dia"), podem ter-se passado mais de 100 anos até que alguns cristãos, talvez em Roma, introduzissem no culto afirmações formais de crença, numa tentativa de consolidar seu grupo contra as exigências de outro cristão, chamado Marcion, a quem consideravam um falso mestre. Mas foi só no século IV, depois de o imperador romano Constantino ter-se convertido à nova fé - ou de tê-la no mínimo descriminalizado -, que, por ordem dele, bispos cristãos se reuniram na cidade de Nicéia, no litoral da atual Turquia, para entrarem em acordo quanto a uma declaração de crenças em comum - o chamado credo de Nicéia, que até hoje define a fé para muitos cristãos.
       Mas eu sei, pelo meu contato com pessoas naquela igreja, tanto em cima quanto embaixo, com crentes, agnósticos e buscadores, bem como com pessoas que não pertencem a nenhuma igreja, que o importante na experiência religiosa envolve muito mais do que aquilo em que acreditamos (ou em que não acresitamos). O que é o cristianismo e o que é religião, eu me perguntava, e por que tantos de nós ainda a acham irresistível, independentemente de pertencermos a uma igreja, e apesar das dificuldades que possamos ter com determinadas crenças ou práticas? Do que gostamos na tradição cristã - e do que não podemos gostar?

Fonte: do livro "Além de Toda Crença", de Elaine Pagels, Editora Objetiva, 2003.

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