Por Ruy Simon Paz
I
Preliminarmente, é preciso que se reafirme o seguinte: “a Doutrina é dos Espíritos, o Espiritismo é dos homens”. Neste enunciado, o espírito A. Grimm nos esclarece que o Espiritismo é a interpretação espaço-temporal, alcançada pelos homens, dos fundamentos da Doutrina dos Espíritos. Em outras palavras, é o alcance possível que fazemos, a cada época, em face dos paradigmas da contingência, da inteligência e da cultura. Portanto, alcance permitido pelos instrumentos, instruções, conhecimentos e saberes de cada época da história humana.
Kardec é conhecido como o Codificador da “terceira revelação”. Por que terceira revelação”? Se Moisés nos trouxe a “primeira revelação” e Jesus Cristo a “segunda revelação”, o que revelaram esses três grandes pontuais, em épocas tão distantes e diferentes? No meu entendimento revelaram a substância permanente da chamada Lei Natural. Mas, isso não significa a própria substância em si, pois ela não se mostra, como o próprio nome diz, revela-se, mas, significa a interpretação possível à luz dos paradigmas acima mencionados. Ou seja, Jesus recontextualizou o que afirmara Moisés, substituindo a “lei de talião” pela Lei do Amor. Fazendo isso negou e invalidou a primeira revelação? Certamente que não. Manteve a substância, a prístina - aquilo que é permanente e não se altera, qual seja, o substancial e imanente sentido de justiça que sempre esteve presente em todas as épocas da Humanidade. Este é o ponto comum entre Moisés, Jesus e Kardec. O que se alterou, então? Os meios de se fazer justiça. O “olho por olho, dente por dente” deu lugar a “fora da caridade não há evolução”. Na sequência, Kardec sustenta a Lei do Amor e o sentido de justiça na cogência da ciência, da filosofia e da religião. Cada qual, a seu tempo, inovou e renovou a interpretação da substância alicerçado nos ombros dos antecessores. Portanto, não houve negação do passado, mas reafirmação dos fundamentos à luz da contemporaneidade. Sem Moisés não haveria Jesus e, sem o Mestre, não haveria Kardec.
Então, devemos “rasgar” o Velho Testamento? Evidentemente que não. Trata-se de peça de grande relevância na história da Humanidade. Mas, mantê-lo ipsis litteris como referência indefectível na atualidade é repetir, à exaustão, a forma em detrimento da necessária e permanente reflexão sobre a essência da chamada Revelação. É manter o pensamento arrumado em face de uma interpretação datada, anacrônica. Nada mais deletério para o necessário pensamento crítico.
Grande parte da obsolescência das correntes ditas cristãs deve-se à nociva sacralização das formas temporais das revelações e dos seus portadores. Sim, porque sacralizar significa, entre outras coisas, tornar estático, inquestionável e definitivo aquilo que é temporal, aprisionando o pensamento crítico e, até mesmo, a possibilidade de evolução do espírito. No fim, restam os ritos e repetições sem sentido, como as preces decoradas.
Não façamos o mesmo com Kardec e nem com o Espiritismo. Ambos merecem o melhor de nossos esforços.
II
Conforme as reflexões do texto anterior, a sacralização da Doutrina significa torná-la datada, estéril, imune às transformações do conhecimento, dos saberes, alcançados pela Humanidade em todas as épocas. Como terceira revelação, a Doutrina Espírita recontextualiza os fundamentos permanentes da Lei Natural, assim como fizeram todos os grandes pontuais, como Moisés, Jesus, Buda, Lao- Tsé, Confúcio, entre outros. Portanto, faz a atualização do pensamento crítico em face do eixo fundamental e substantivo da permanente busca da verdade.
Kardec já afirmara que o Espiritismo era uma obra inacabada. Assim como Jesus não disse tudo, porque se assim o fizesse criaria mais confusão do que esclarecimento, dadas as nossas limitações temporais, Kardec codificou o possível em face de uma mentalidade possível, pois, como bem assegurara: “Os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo e das pesquisas o homem, nem para lhe transmitirem, inteiramente pronta, nenhuma Ciência … De há muito, a experiência há demonstrado ser errôneo atribuir-se aos Espíritos todo o saber e toda a sabedoria e supor-se que baste a quem quer que seja dirigir-se ao primeiro Espírito que se apresente para conhecer todas as coisas”[1]. Portanto, o próprio Codificador alertou-nos sobre a necessária permanente crítica do discurso espírita. Em outras palavras, podemos acrescentar que a melhor contribuição à causa espírita é a reflexão permanente e não a repetição extenuante.
Recontextualizar não significa rejeitar, invalidar, mas sobretudo renovar nossa compreensão, em face daquilo que é permanente, à luz do contemporâneo. Do contrário, não haveria evolução, progresso, para o espírito. Teríamos permanecido na primeira revelação, pois, em hipótese nenhuma poderíamos alterá-la, assim como procedem os fanatismos de todas as ordens. Ora, seria o fim da história e, conseguintemente, da vida, do espírito, porque não haveria mais propósito algum em existir. Isto revela o mais alto grau do absurdo, pois, seria a negação do próprio Creador.
Nada é permanente, a não ser a mudança. Esta afirmação, dita em outras palavras, foi pronunciada por Heráclito, há aproximadamente 2.500 anos. Talvez por isso o tenham chamado de o “obscuro”, pois poucos o compreenderam. Ele se referia, certamente, a physis, onde registramos nossas impressões, concepções, percepções e entendimentos. Portanto, os veículos, as “embalagens” de nossa compreensão da verdade, ou seja, a simbologia da cultura que a transporta, está em permanente transformação, assim como o rio de Heráclito, onde um homem nunca se banha duas vezes, porque da segunda vez nem ele, nem o rio, serão os mesmos.
A propósito de Lao-Tsé, encerro a coluna de hoje com uma citação esclarecedora desse grande pontual: “Quem conhece a sua ignorância revela a mais profunda sapiência. Quem ignora a sua ignorância vive na mais profunda ilusão”.
[1] KARDEC, A. A Gênese, O Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. 36a. Edição, pág. 48, FEB, RJ, 1944.
III
Todo pensamento parte de pressupostos, premissas. Esses pontos de partida do raciocínio crítico sustentam-se nos chamados paradigmas da contingência, da inteligência e da cultura. Analisemos um exemplo contemporâneo. Hoje, sabemos que um simples pendrive de 512 Kb é capaz de armazenar o conteúdo de 400 livros; um disco rígido de 1 terabyte ( 1.000.000 de megabytes) suporta, aproximadamente, 800.000 livros. Isso não nos parece mais surpreendente, pois já vivemos a era da tecnologia da informação baseada em meios digitais.
Imaginem alguém revelar essas possibilidades no início do século passado. Certamente seria tachado de louco. Afinal, pelos paradigmas vigentes à época, a única forma admissível de armazenar informação era em papel impresso. Com efeito, podemos supor que nada é impossível, mas muitas coisas ainda são improváveis, pela ausência de conhecimentos, instrumentos e instruções que possam viabilizá-las. Um dia, não muito distante, faremos nossos deslocamentos através do teletransporte. Será impossível? Em 1906, Santos Dumont conseguiu a proeza de voar por 60 metros com um aparelho mais pesado do que o ar. O feito repercutiu na imprensa do mundo todo. Afinal, era impossível voar sem asas, como os pássaros. Passadas seis décadas, o homem estava pisando na Lua. O impossível não só se tornou possível, como superou todas as expectativas conhecidas e inimagináveis.
Portanto, nada é sagrado, no sentido de intocável, a não ser a permanente mudança. Isso vale para todas as Doutrinas, inclusive a Espírita. Não significa dizer, como já afirmamos antes, que os fundamentos doutrinários estão em questão. Utilizando-nos do exemplo acima, Santos Dumont não revogou a lei da gravidade, nem outra qualquer lei da natureza. Esta não adaptou-se, ou reduziu-se, aos desígnios do grande inventor. Pelo contrário, é o cientista que se submete às mesmas leis, fazendo um segundo olhar e enxergando aquilo que estava, ainda, oculto. A possibilidade de voar estava ali, somente não era concebida, nem percebida e, muito menos, compreendida.
A necessária recontextualização de Doutrina Espírita submete-se a mesma lógica, ou seja, seus fundamentos permanecem intocáveis, assim como as leis da natureza, mas a interpretação que fazemos deles, em face do possível de cada época, merecem ser criticados permanentemente, para ampliarmos, cada vez mais, os horizontes da compreensão do espírito.
Por um vício de origem em nossa educação formal, abandonamos a reflexão filosófica. Assim, a maneira como vemos o mundo, o outro e a nós mesmos, é tida como natural, inquestionável. Não pensamos que, apesar de recebermos as informações pelos sentidos, sempre atribuiremos significados ao que concebemos e percebemos, transformando-as, por conseguinte, em conhecimento.
As premissas são, normalmente, ocultas, não se mostram, mas se revelam em nossos entendimentos e práticas cotidianas. É preciso questioná-las, sempre. Assim, como o fizeram Dumont, Einstein, Bohr, entre outros. Já imaginaram se Newton fosse sacralizado? Andaríamos em carroças ainda. Ufa!
RUY SIMON PAZ é sociólogo e Professor Acadêmico na Faculdade Dr. Leocádio José Correa (FALEC) e colunista da Revista SER Espírita.
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